Coluna Farol

Crises globais como a que estamos vivendo modificam nosso modo de vida e nos colocam em uma situação inesperada e que foge ao nosso controle, em uma escala que envolve culturas e países do mundo inteiro. Nesses momentos somos levados a refletir sobre o que significa ser humano.
Embora seja corrente em nossa sociedade a ideia de que a natureza do ser humano é
inerentemente má e que o mundo é uma competição em que os mais fortes sobrevivem e os mais fracos padecem, momentos de desastre e dificuldades repetidamente nos mostram que essa concepção está longe da verdade: humanos são motivados por ajudar o próximo que se encontra em uma situação difícil, muitas vezes sem receber nada em troca (embora haja, claro, pessoas oportunistas que tentam tirar vantagem ou lucrar se aproveitando do sofrimento alheio).
Um estudo feito na China em 2008 na ocasião de um terremoto descobriu que as crianças
de nove anos agiram de forma mais altruísta do que o normal logo após a tragédia e, as de
seis anos, de modo mais egoísta. Três anos depois, ambos os grupos voltaram a níveis
normais de comportamento altruísta e egoísta, o que significa que vivenciar o terremoto
recente foi um fator que aumentou os comportamentos altruístas de crianças mais velhas e
diminuiu o de mais novas (isto vai ao encontro de outras pesquisas que mostram que
crianças mais velhas já possuem um senso moral e altruísta mais desenvolvido e agem de
acordo com as normas sociais, ao contrário de crianças mais novas). Ou seja, em crianças
com idades em que seu senso moral já está desenvolvido, passar por uma tragédia
estimulou o altruísmo, e não o contrário.
Talvez a ideia de que o mundo é uma luta de todos contra todos seja verdade para peixes,
insetos e répteis, porém eles são organismos mais simples, que respondem ao ambiente de
modo mais limitado. Mesmo se considerarmos, entre eles, o grupo mais avançado na escala
evolutiva, os répteis, veremos que estes demonstram apenas emoções básicas, como
medo, agressão e prazer.
A partir do momento em que surgiram emoções mais complexas na escala evolutiva, outros
modos de se relacionar se tornaram possíveis e, nos mamíferos, enxergamos relações
sociais e formações de grupos. Humanos são seres sociais, nenhuma pessoa é uma ilha e
se vivêssemos na luta de todos contra todos que algumas pessoas acreditam ser a “ordem
natural”, provavelmente não teríamos desenvolvido linguagem, cultura e civilização.
Entre essas emoções mais complexas encontram-se a compaixão, o altruísmo e a empatia.
O que essas três emoções têm de semelhante é o olhar para o outro e seu sofrimento, o
preocupar-se com o outro e o desejo de ajudar, ou o aumento de comportamentos de ajuda
em relação ao outro.
Estudos encontraram que pessoas tendem a demonstrar compaixão com mais frequência
em relação a pessoas próximas do que em relação a estranhos. Pesquisas também
encontraram que mulheres e pessoas com maior grau de religião ou espiritualidade em suas
vidas demonstram mais compaixão. Essa emoção também é correlacionada negativamente
com um tipo de apego denominado inseguro (ou seja, falta de compaixão é correlacionada
com apego inseguro).
Essas emoções voltadas para as necessidades dos outros são complexas e aparecem mais
tardiamente que emoções básicas no desenvolvimento psicocognitivo, além de serem
associadas a estágios do desenvolvimento moral mais maduros pelas teorias psicológicas
de autores como Eisenberg e Kohlberg. E como, nessa época de pandemia, podemos
exercer a compaixão e o altruísmo? O que fazer nesse momento para atuar de forma
solidária?
Há exemplos de iniciativas para as quais você pode contribuir, se tiver os meios, como
inúmeras campanhas de arrecadações e “vaquinhas”, cujos objetivos vão desde angariar
fundos para moradores de favelas e populações mais vulneráveis, ajudar pequenos
comerciantes que suspenderam ou fecharam seus negócios e prover equipamentos para
profissionais de saúde.
Pessoas próximas a você podem perder o emprego e precisar de ajuda financeira ou até de
um lugar para morar, podem ficar doentes e não poderem sair de casa. Esse é um momento
em que é importante, e às vezes até necessário, que famílias e amigos se ajudem. Já havia
indícios de que uma recessão econômica ocorreria esse ano, mas a pandemia aumenta
ainda mais seus efeitos, e mesmo depois que a quarentena acabar muitas pessoas ainda
precisarão de auxílio e solidariedade.
Quem não tem acesso à internet se vê prejudicado de vários modos: ficando sem acesso às
notícias e não conseguindo trabalhar remotamente ou assistir às aulas, e tudo isso acaba
tendo impacto no presente e no futuro. Se você conhece alguém sem acesso à internet
pode tentar auxiliá-lo ou mantê-lo informada através de outros meios, como o telefone.
Em áreas urbanas não se costuma ter muito contato com os vizinhos, mas se você os
conhece ou gostaria de ajudá-los, uma possibilidade é fazer as comprar para idosos, que
estão no grupo de risco, para que eles não tenham que se expor. O mesmo vale para um
colega que ficou doente, mas nesse caso para não contaminar os outros no mercado.
Lembrando que sempre tendo precauções e cuidados para evitar contato e seguir as
indicações de higiene.
O isolamento, que traz preocupações, falta de contato social e de exercício físico, pode
prejudicar a saúde mental e mesmo propiciar episódios de ansiedade e depressão. Criar
uma rotina de exercícios físicos, entrar em contato com os amigos e familiares remotamente
por meio de vídeo e mensagens, e procurar psicólogos que estejam disponibilizando terapia
remotamente gratuita ou em um valor mais acessível são ações que podem amenizar os
efeitos psicológicos negativos.
Ver o momento a partir da lente altruísta também serve para ressignificar o próprio
isolamento. A perspectiva da doença e o isolamento podem implicar em ansiedade,
incerteza, sentimento de impotência e dificuldade em tomar decisões. Se você fica frustrado
por conta da situação ser algo que se impõe na sua vida e restringe a liberdade fazer
escolhas, vale pensar que, dentro dessa situação, ainda pode escolher fazer a coisa mais
altruísta, que é permanecer em quarentena pelo bem comum.
Fontes:
Li, Y., Li, H., Decety, J., & Lee, K. (2013). Experiencing a natural disaster
alters children’s altruistic giving. Psychological science, 24(9), 1686-1695.
Koller, S. H., & Bernardes, N. M. (1997). Desenvolvimento moral pró-
social: semelhanças e diferenças entre os modelos teóricos de Eisenberg
e Kohlberg. Estudos de Psicologia (Natal), 2(2), 223-262.
Underwood, L. G. (2002). The human experience of compassionate love: Conceptual mapping and
data from selected studies.
Vinícius Pereira Mancebo Gomez é psicólogo formado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e atualmente faz especialização em Psicologia Clínica Hospitalar no Incor, do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da USP. Nas horas vagas gosta de ler, programar e tocar violão. CRP 06/158697