
“Ele não vai chegar aos 5 anos. Ele vai ficar cego, surdo, com problema cardiorrespiratório, não vai andar, não vai falar, vai ter retardo mental e morrer até os 5 anos”. O que uma mãe faz depois de um prognóstico desse na primeira consulta de seu filho recém-nascido? Chora? Provavelmente, sim. Desespera? Outro grande sim, também. Pelos menos essa é a reação dos primeiros momentos.
Mas depois ela vai para casa com seu filho no colo, segurando sua pequena mãozinha entre as suas e vai se apegar à fé de que o médico pode estar errado, a Medicina pode trazer novidades em breve, o futuro pode ser um lugar melhor do que aquele cenário cinzento e dolorido que lhe fora injetado sem anestesia. Quando, em casa, abraça seu filho forte contra seu peito e sente o coração dele batendo junto ao seu, pode descobrir uma força que jamais imaginou ter.
Dizem que quando um bebê nasce, nasce também uma mãe. Diante desse prognóstico, Regina Próspero viu nascer dentro dela e extrapolar algo maior do que jamais poderia sonhar, que transformou não apenas a vida de seus dois filhos nascidos com mucopolissacaridose, Niltinho e Dudu, mas de muitas outras famílias que enfrentaram e enfrentam a mesma doença ou outra doença rara.
Diante das dúvidas e incertezas, encontrou seu jeito de sobreviver: um dia de cada vez. Foi essa explicação que deu ao médico que lhe perguntou, no leito de morte de Niltinho, o filho mais velho, como ela conseguia lidar com tudo aquilo. “Um dia de cada vez, doutor, se não eu fico louca. Hoje eu durmo, amanhã começo tudo de novo”. E assim, um dia de cada vez, vai ajudando a transformar histórias. Essa força, garra e determinação fazem de Regina uma pessoa única – e também plural, que se reinventa a cada novo desafio.
“Em 1988 tive o meu primeiro filho, o Niltinho, que nasceu de um parto prematuro, de 33 semanas. Já no pós-parto ele apresentou alguns problemas, mas como era prematuro e nasceu em Itápolis, cidade pequena do interior de São Paulo sem muitos recursos, os médicos sempre atribuíam o que ele estava passando à prematuridade. Eu percebia que a saúde dele não era normal e estava sempre alertando os médicos de que tinha alguma coisa errada, mas eles achavam que era por ser prematuro.
Quando Niltinho estava com cinco meses, levei em um pediatra de Ribeirão Preto, avisei que ele tinha um caroço na coluna e pedi um raio-x. O médico solicitou o exame e o laudo indicava investigar mucopolissacaridose, porque a quinta lombar visível é uma das características da doença. Meu filho precisou fazer vários exames e os médicos do hospital me disseram que se realmente fosse comprovada a suspeita, era melhor eu não engravidar mais, porque os outros filhos poderiam ter o mesmo problema, por ser uma doença autossômica recessiva (que se manifesta quando existem dois genes recessivos dos pais). Mas eu já estava grávida do Dudu e não sabia.
Eu tive o Dudu à revelia dos médicos – eles queriam que eu tirasse, mas eu não quis. O Dudu nasceu bem, os médicos acharam que ele não tinha nada, só que quando ele estava com dois anos e meio e foi comigo a uma consulta do Niltinho em uma geneticista em São Paulo, a médica disse que ele também tinha a doença. O exame de punção óssea confirmou que os dois tinham mucopolissacaridose, mas não conseguiam subtipar. A subtipagem demorou cinco anos para ser concluída – o material foi enviado para Londres e o resultado indicou que era mucopolissacaridose tipo Maroteaux-Lamy, que é uma forma até menos ruim, apesar de ser ainda bastante cruel.
Sete meses depois o Niltinho veio a óbito com uma parada cardiorrespiratória severa. O velório dele parecia de autoridade, de tanta gente que tinha. Quando eu cheguei do hospital na minha casa, meu quarteirão estava cheio de gente me esperando, fechou a rua. A escola dele praticamente fechou e as mães estavam todas lá comigo. São coisas que não esqueço e fazem a gente perceber que andou no caminho certo, fez direito e que ele deixou uma marca; até hoje por onde passo as pessoas lembram. Ele conseguiu cumprir a missão dele com louvor. Foi curta, mas foi com louvor.
Nessa época o Dudu começou a apresentar sinais da doença, a ficar surdo, depois cego e com deficiência cardíaca. Eu tinha 29 anos e três anos depois tive o Léo, que nasceu sem a doença.
Desde o início eu fui desbravar o que era mucopolissacaridose, numa época em que não tinha internet, quase nada de informação. Fiz isso para poder melhorar a qualidade de vida dos meninos, porque nem os médicos conseguiam me ajudar; muitos tentavam, mas era muito complexo. No meio desse processo nos mudamos para São Paulo.
Eu pesquisava e aplicava o que aprendia nos meus filhos, meus cobaias. Eu tive que ir atrás, estudar inclusive nutrição, tudo informalmente. Eles tinham diversas disfunções, inclusive gástricas, e para não entupi-los de remédio eu ia para a parte alternativa, cuidava da alimentação. O Dudu, por exemplo, teve uma anemia muito forte e aos sete meses precisou fazer transfusão de sangue. Um mês depois ele precisava de outra transfusão, isso em uma época em que os exames ainda não eram tão regulados como são hoje e era alto o índice de doenças contagiosas transmitidas por transfusão. Eu fiquei apavorada, fugi do médico e comecei a tratar dele com dieta - ele melhorou e fiz o mesmo quando eles estavam com o intestino solto, depois com intestino preso. Pesquisava para garantir uma alimentação melhor, para que tivessem menos fabricação de muco, porque a mucopolissacaridose fabrica muco em exagero.
Eu fui buscar meios alternativos para que eles sofressem menos; pesquisava os melhores movimentos em fisioterapia, por exemplo, e repassava essas informações para outras famílias.
Em 1993 algumas médicas pediram para eu criar uma associação, mas não tinha condições, com dois filhos que precisavam de mim. Coloquei meu telefone à disposição para aquelas pessoas que precisassem de uma ajuda, mesmo que fosse um ombro amigo. Meu telefone não parava.
O Nilton, meu marido, relutou muito em aceitar a doença dos meninos. Até um dia em que nós fomos a um congresso em Porto Alegre e ele viu outras famílias e outras crianças. Naquele momento ele mudou completamente, viu que poderia usar a dor a favor de outras pessoas; saiu da dor dele para ajudar ao próximo. Aquele momento foi um divisor de águas, importante para ele entender inclusive parte da missão que tem em ajudar e se doar. Nós dois viemos de uma família onde havia muita solidariedade e isso foi enraizado. Não dá para ver o sofrimento no seu próximo e ficar alheio se você pode fazer alguma coisa.
Em 2001 a associação nasceu e nós oficializamos o trabalho que já fazíamos informalmente, passando a ajudar ainda mais outras famílias que vivenciavam os mesmos problemas que nós. Conseguimos trazer pesquisas clínicas para mucopolissacaridose para o Brasil e essa iniciativa abriu possibilidades de realizar pesquisas para doenças raras no país.
O Dudu foi um dos participantes da pesquisa; o sucesso do tratamento foi tanto que as famílias começaram a nos pedir socorro – e nós fomos ajudando e de repente estávamos apoiando também famílias de outras doenças. Quando nos demos conta, tínhamos uma associação nacional ajudando não só mucopolissacaridose, mas doenças genéticas e raras. Tomamos um corpo que, sinceramente, a gente não esperava e nem estávamos capacitados para tanto.
Tivemos que correr atrás: fizemos capacitação, estudamos para poder defender melhor a causa que a gente já tinha adotado. Em 2003, o Nilton, que trabalha com TI, fez o primeiro site para doenças raras no Brasil. Nesse ano também começamos a trabalhar com políticas públicas. Aumentavam os pedidos de ajuda de todo país e íamos ajudando.
Hoje o Instituto Vidas Raras é uma entidade reconhecida internacionalmente pelo trabalho que faz em políticas públicas e advocacy não só no Brasil, mas no mundo todo onde se trabalha com doença rara. Temos uma rede em vários países e fazemos parte de diversas entidades que nos mantêm informados, com uma troca de experiência muito boa.
Nosso maior desafio é melhorar a situação dos pacientes com doença rara, melhorar a qualidade de vida de muitas famílias que precisam do nosso esforço. Às vezes a gente dá uma esmorecida, mas Deus sempre manda uma mensagem. Sempre que estou ‘caidaça’ vem uma família que agradece de uma forma muito simples, que me toca o coração, ou eu vejo que alguma criança conseguiu fazer coisas que não conseguiria se a gente não tivesse interferido. Esse é o nosso motivador.
Se eu tivesse desistido lá atrás, eu acho que muitas crianças não estariam com a qualidade de vida que estão hoje. É nisso que a gente se apega. Tem dias que, sinceramente, eu tenho vontade de dar uma de avestruz – mas sempre vem uma mensagem, um pedido de ajuda e eu guardo minha dor no bolso para ajudar aquela família. O desejo de desistir passa.
Depois do tratamento experimental do Dudu nós conseguimos o registro e a incorporação de todos os tratamentos, que foram disseminados para todos os paciente elegíveis.

Quando o Dudu resolveu estudar Direito, a faculdade não aceitava que ele estudasse sozinho. Eu nunca pensei em estudar Direito na minha vida, mas fui fazer faculdade com ele. Lembro que nos primeiros dias toda vez que ele comentava algo na aula eu ficava espantada, de queixo caído. A gente não tem noção do potencial dos filhos. Sabia que ele tinha muita inteligência, mas não fazia ideia do quanto inteligente ele é. Durante as aulas, alguns dias eu ficava parada olhando a sala e me perguntava: “Meu Deus, o que eu estou fazendo aqui?”. Cheguei a pensar em desistir, mas dizia a mim mesma que não sou pessoa de desistir – por isso, iria até o final.
Foram cinco anos de privação, quase sem final de semana livre, sem divertimento, todos os dias praticamente deitada sobre os livros estudando. As notas dele eram bem melhores que a minha – dava até raiva (risos). Eu, que estava preocupada com ele, no final ele tirava de letra e eu ficava para trás – até os professores tiravam sarro de mim.
Foi muito bom fazer a faculdade, pelo conhecimento, pelas pessoas que eu conheci, por tudo que me proporcionou. Tenho um elo até hoje com os professores e com a faculdade. Hoje digo que foi uma benção que ele me proporcionou: eu não ajudei ele; ele me ajudou. Esse estudo me deu grande conhecimento e permitiu a fortalecer o instituto, que ganhou a dimensão que tem porque compramos as brigas que vale a pena comprar. É necessário ter conhecimento para brigar pelo que se está pleiteando.
Depois o Dudu fez Administração de empresas – dessa vez estudou sozinho; só me avisou que eu precisava levá-lo para fazer a prova de vestibular e ir embora, não ficar nem na sala. Ele passou em um concurso da Prefeitura de Itápolis, cidade em que nasceu e da qual gosta muito, e resolveu mudar-se para lá. No dia da mudança, meu marido chorou o dia inteiro. Eu disse a ele que precisávamos ver a força que o Dudu teve para partir, deixar o conforto de casa para ir atrás de um sonho. Meu coração ficava apertado, preocupada se ele estava comendo direito porque ainda não tem o domínio de todas as funções e não enxerga, mas foi a escolha dele e eu não poderia interferir.
Em casa, comemoramos todas as conquistas. Muitas vezes a gente estava sem dinheiro, mas comemorávamos cada aniversário dos meninos. Quando completou 5 anos o Niltinho já não estava muito bem, aos 6 anos estava bem ruinzinho. Eram bonitas as festinhas dele, vinha gente de tudo que é lugar, ninguém perdia – estava sempre todo mundo com ele. O do Dudu também.
Comemoramos cada conquista, mesmo que seja mínima. Falaram para mim que meu filho nunca ia andar - no dia em que ele deu os primeiros passinhos, eu chorei pra caramba. Falei: ‘Consegui!’. O dia em que ele saiu da fralda, comemorei: ‘Consegui!’. O dia em que ele deixou a mamadeira: ‘Consegui!”. O dia em que ele fez o primeiro desenhinho que tinha sentido: ‘Consegui!’.
O Léo está com 21 anos e é piloto da Gol – o nosso piloto. O Dudu pediu licença não remunerada em Itápolis, voltou para casa esse ano e está trabalhando com a gente no escritório.
Daquele prognóstico dos médicos de que o Dudu só viveria cinco anos, depois passou para 10 anos e por último 20 anos. O Dudu já está com 30 anos – atingiu e ultrapassou todas as expectativas. Digo que ele virou Matusalém (risos)”.
Mensagem
Sempre gosto de falar para as famílias investirem. Por mais que tenha um diagnóstico aterrorizante, uma doença sem cura, degenerativa progressiva, vai caber a você mudar toda essa história ou não - eu consegui mudar a minha. Sei que foi pelo esforço da minha família: eu, meu marido, minhas irmãs e irmãos que me ajudam sempre, estão sempre ao meu lado. Se você não investe agora, não vai ter resultado positivo no futuro. Vale a pena cuidar, investir, dar toda a atenção. É custoso, é cansativo, às vezes até desestimulante, mas extremamente necessário extrair daquele ser o que ele tem de bom - porque ele também vai te agradecer.
Regina Próspero, fundadora do Instituto Vidas Raras - vidasraras.ong.br
Toda segunda quinta-feira do mês o Instituto Contemplo traz uma história inspiradora,
motivadora, uma história especial. Uma história de uma mulher que conseguiu transformar o
grande desafio de sua vida em um exemplo de superação. Uma mulher única, ao mesmo
tempo em que é plural. Como somos todas nós.
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Colaboração: Lapidando Palavras